quinta-feira, 24 de abril de 2008
2008, o ano em que 1977 terminou.
A rampa de acesso ao primeiro piso da reitoria da Universidade de Brasília estava interditada. O grupo de 150 estudantes que ocupara a reitoria da UnB no dia 3 de abril permanecia no prédio, exigindo a demissão do reitor. O protesto principal dos alunos era contra desvio de finalidade na aplicação de recursos destinados a pesquisa científica para a compra de objetos de decoração de luxo e utilizados na reforma do apartamento utilizado para moradia do reitor. O bloqueio dos alunos à entrada da reitoria estava demarcado por uma placa que solicitava "apresente a carteirinha de estudante" como passaporte para ingressar nos pisos superiores da reitoria. Em respeito à advertência, parei junto à placa e perguntei às duas estudantes que ali faziam a sentinela se eu informasse apenas o número da minha matrícula de aluno da UnB do ano de 1976 valia, explicando a elas que eu não portava a minha carteirinha de estudante emitida 32 anos antes. Elas não entenderam de imediato o meu questionamento, e eu logo percebi que elas tinham mesmo lá os seus motivos.
Afinal, naquele encalorado final de tarde de sexta-feira, 11 de abril, a pergunta vinha de um inusitado grisalho engravatado, que soava estranho num ambiente de meninas recém púberes e de meninos com a barba rala e por fazer, acampados há oito dias no revestimento de borracha preta que faz as vezes de piso nos corredores da reitoria da UnB. Em meio aquele woodstock universitário eu era ali um cinquentão em terno de risca de giz. As meninas guardiãs da entrada do prédio reservada apenas aos estudantes nunca tinham me visto antes. Nem em salas de aula, assembléias ou nos atos coletivos disparados desde a ocupação da reitoria. Poderiam elas confiar o acesso ao prédio ocupado para aquele senhor que, antes de se aproximar à entrada da rampa, vagara por alguns minutos por entre as barracas em formato de iglu em que os estudantes dormiam, que caminhara ao meio dos rolos de papel craft utilizados para pintar palavras as frases de protesto, como que a contemplar o cenário de um conflito?
Não me demorei mais que dez ou quinze minutos na minha visita à reitoria ocupada pelos estudantes. Melhor dizendo, na visita anônima e solitária que realizei para conhecer mais de perto aqueles estudantes que, rompendo com a tradição macunaímica entranhada na cultura brasileira de se querer levar vantagem em tudo, e de se evitar a denúncia ou a contestação de fatos relacionados a malversações na esperança de que o silêncio conivente leve à possibilidade de também ficar com um pedaço do butim, e que surpreendentemente se apresentaram à sociedade brasileira como defensores de uma ética republicana na condução dos negócios públicos.
Sim, pode ser difícil de se compreender aqueles estudantes à primeira mirada. Não foram os professores dos departamentos de filosofia, direito, sociologia ou assemelhados os primeiros a se rebelar no campus contra as condutas que o Ministério Público apontava como não adequadas na gestão de órgãos da UnB, como também não partiram de parlamentares ou sindicalistas até então alinhados com a bandeira da educação as iniciativas de um posicionamento absoluto por uma ética radical.
Aos jovens estudantes em ocupação da reitoria o aconselhamento primeiro que viera da casta professoral, da corte parlamentar e de instâncias administrativas superiores fora de um conformismo atávico. Os argumentos preponderantes eram de que à ilegalidade não se chegara na gestão daqueles recursos públicos destinados à educação, ainda que se pudesse discordar no campo moral sobre as escolhas feitas na aplicação dos mesmos. Os doutos, as Vossas Senhorias e as Vossas Excelências afirmavam aos alunos que as questões em denúncia pelo Ministério Público não eram de ordem legal, mas sobretudo de natureza ética, e que assim deveriam ser discutidas. Pobres aprendizes, aconselhados naquela circunstância por alguns de seus ilustres mestres a se consolarem com uma possibilidade infinita de tergiversações sobre se o que não é ilegal mas se apresenta como antiético seria ou não passível de contestação.
Eles não se conformaram e fizeram com a ocupação a sua própria hora acontecer. E foi com a alegria de ouvir aquele retumbante não que os estudantes pronunciaram com o seu gesto de ocupação ao mesmo tempo pacífica e radical que percorri o pequeno trajeto entre o estacionamento e o prédio da reitoria. Quando finalmente me aproximei do prédio alguns deles estavam lavando com água e sabão o prédio da reitoria, dois ou três ao violão ensaiando acordes de Renato Russo, outros em leitura e muitos com olheiras das noites mal acomodadas.
Entrei no túnel do tempo e vi ali flashes da greve de estudantes do ano de 1977, na mesma UnB. Naquele ano, muito ao contrário da República Livre pela Ética proclamada pelos estudantes de 2008, o campus da UnB foi ocupado por centúrias, talvez um milhar de policiais que, por solicitação do reitor e com aval do Palácio do Planalto passaram a espionar, intimidar e a reprimir os estudantes em greve naquele período. Eu confesso que tive dificuldade em identificar as sensações que me vinham naquele caminhar. Trinta anos depois tudo estava muito ao contrário na Universidade de Brasília. Ao contrário de um reitor plenipotenciário protegido por seguranças e alimentado de informações sobre o movimento estudantil por toda sorte de instrumentos, inclusive de fotos tiradas por teleobjetivas postadas no alto da reitoria para identificar os alunos que se reuniam a trezentos metros dali no teatro de arena, o edifício da reitoria estava naquele instante sob controle pacífico daqueles jovens universitários.
Em 1977 eu cursava o quarto semestre de agronomia, e fazia parte do Centro Acadêmico Agro-Flô, que representava também os alunos de engenharia florestal da UnB. Recém calouro, eu apoiava as lideranças do Centro Acadêmico durante a greve ora pintando faixas, ora convocando e participando de mobilizações da greve que realizávamos em prol da anistia política, da redemocratização do país e de bandeiras difusas pela autonomia universitária, entre elas a escolha do reitor pela comunidade acadêmica. Não tínhamos denúncias concretas contra o reitor José Carlos Azevedo. O protesto era político e nacionalmente articulado. Mas, na universidade, o então reitor simbolizava o regime, e por isso caminhávamos minhocão afora com os bordões de "a greve continua, põe o capitão na rua", e outros tantos até que o campus, inicialmente ocupado por um conjunto de falsos alunos travestidos de hippies fora de moda que a tudo vigiavam e que se calavam à primeira tentativa de conversação, por fim oficialmente ocupado pela polícia. Aos soldados contrapunhamo-nos apenas cantando o Hino Nacional e o Hino da Independência com a bandeira do País à frente dos manifestantes.
Ficou na memória coletiva a imagem do King Kong, alcunha com a qual identificávamos um policial escolhido pelos estudantes para tipificar o padrão da ocupação. A memória distante faz ternos até os momentos mais difíceis pelos quais passamos, onde as polaridades se desvanecem e uma bruma de poesia toma conta.
Perdemos aquela greve, foi a minha impressão à época. O reitor puniu mais de 50 estudantes, alguns deles com a expulsão. O conselho universitário foi convocado para analisar as punições e, para desconsolo dos estudantes e de uma parte dos professores, endossou os feitos da reitoria. Um sem número de estudantes em desencanto ou em fuga da repressão desencadeada não retornou às aulas, eu entre eles. Abandonei o curso e a instituição. Mas, por estranho desígnio, guardo até hoje a minha carteirinha e sempre soube de cor o número da minha matrícula na UnB. Naqueles meus 18 anos eu não aceitava que as punições estivessem endossadas pelo que seria o órgão maior da instituição, não concordava com o progressivo retorno às aulas pela maioria dos alunos, e também não aceitava o discurso parlamentar de nossos interlocutores no Congresso Nacional que nos consolavam afirmando que os objetivos tinham sido alcançados, como se a greve tivesse sido vitoriosa. Tudo era muito intangível para mim, e argumentei que ao invés de continuar o estudo da agronomia eu deveria buscar o conhecimento do comportamento e da alma humana. Fiz vestibular no CEUB, Centro Universitário de Brasília, e me formei em psicologia. Em verdade sem nunca ter encontrado respostas para as perguntas que eu me fazia naquele segundo semestre de 1977.
Foi com este pequeno filme a me passar na cabeça que cheguei ao pé da rampa de acesso à reitoria ocupada pelos estudantes. Eu os observava ora como pai, ora como grevista de 1977. O que aqueles jovens estudantes pediam em 2008 era em muito superior às nossas reivindicações de 1977. Mesmo a simbologia do ato reivindicatório de literalmente ocupar a reitoria, sem violência ou vandalismos superava o nosso protesto peripatético de caminhadas pelo campus, de reuniões em anfiteatros ou de assembléias no teatro de arena em 1977. Sim, é preciso considerar que em 2008 os estudantes puderam contar em seu protesto com as garantias constitucionais do estado de direito que pleiteávamos em 1977. A maioria dos alunos em ocupação da reitoria em 2008 nasceu já com a democracia em consolidação, experimentaram o voto para presidente aos 16 anos, puderam participar de eleições para reitor e da discussão sobre políticas públicas de educação, e que ao lado da anistia política eram nossas bandeiras três décadas atrás. A falta de bandeiras políticas pelas quais os estudantes pudessem se bater foi apontada durante os anos de 1980 à década de 2000 como fator de desmobilização dos movimentos estudantis durantes os anos da democracia, chegando mesmo ao controle de organismos de representação lideranças simplesmente aderentes aos governos de plantão, com reivindicações que não ultrapassavam o chavão de 'mais verbas para a educação', inclusive verbas para sustentar o próprio movimento, e que assim se despersonalizava.
Porém, algo de novo, algo de diferente se passava com aqueles estudantes ali na UnB. Junto à rampa troquei as minhas poucas palavras com as duas alunas que cuidavam do controle de entrada. Meio minuto depois de eu ter perguntado se eu poderia entrar, mesmo sem a carteirinha exigida como salvo-conduto, não sei bem o porquê elas me acreditaram como ex-aluno e colega de 1977, e também como pai de uma aluna de 2008 que estivera com elas em vigília numa das noites de ocupação. Talvez me tenham lido os olhos ou a alma e percebido que a minha missão era de paz. Mesmo com o convite delas optei por não subir. A visita no piso térreo já me tocara por demais.
Uma das alunas ao pé da rampa estudava Física, e a outras Ates Cênicas. Elas não tinham outras reivindicações que não fossem a da busca da correição no exercício da função pública. Não tinham discursos decorados ou estruturas de argumentação ideologicamente padronizadas. Não eram contra e nem a favor do governo, não passava por estes caminhos previamente pavimentados o protesto delas. A razão do protesto viera da indignação dos estudantes e de suas famílias, a razão estava na busca por uma ética que elas consideravam possível e adequada, ainda que a muitos parecesse perdida ou ultrapassada. De saída, perguntei a elas o motivo de terem escolhido os cursos que faziam. Não me vejo fazendo outra coisa na vida, respondeu uma de nome Maritza. Com esta frase a me ecoar caminhei de volta ao estacionamento, meio que chorando e rindo baixinho, de orgulho daquela meninada.
No domingo, 13 de abril, a notícia de que o reitor da UnB havia renunciado ao cargo, assim como o vice-reitor o fizera no dia anterior. Eu fiz as contas e percebi que em apenas dez dias um grupo inicial de 150 alunos derrubara a reitoria de uma das mais importantes universidades brasileiras. Não quebraram um único vidro. Não viraram ou incendiaram carros. Nem mesmo palavras de ordem que pudessem contagiar multidões em passeatas eles as tinham nas faixas de papel que grudavam com fita crepe nas paredes. Eles pediam e diziam simples e radicalmente ética. E venceram. Por impensado que pareça.
De certa forma, talvez para o meu conforto na busca das respostas que desde há muito eu procuro, fiquei com a impressão de que 2008 foi o ano em que 1977 terminou.
Meninos e meninas deste feito, muito obrigado.
João Vianney.
Ex-aluno da UnB. Matrícula 76/02251
Afinal, naquele encalorado final de tarde de sexta-feira, 11 de abril, a pergunta vinha de um inusitado grisalho engravatado, que soava estranho num ambiente de meninas recém púberes e de meninos com a barba rala e por fazer, acampados há oito dias no revestimento de borracha preta que faz as vezes de piso nos corredores da reitoria da UnB. Em meio aquele woodstock universitário eu era ali um cinquentão em terno de risca de giz. As meninas guardiãs da entrada do prédio reservada apenas aos estudantes nunca tinham me visto antes. Nem em salas de aula, assembléias ou nos atos coletivos disparados desde a ocupação da reitoria. Poderiam elas confiar o acesso ao prédio ocupado para aquele senhor que, antes de se aproximar à entrada da rampa, vagara por alguns minutos por entre as barracas em formato de iglu em que os estudantes dormiam, que caminhara ao meio dos rolos de papel craft utilizados para pintar palavras as frases de protesto, como que a contemplar o cenário de um conflito?
Não me demorei mais que dez ou quinze minutos na minha visita à reitoria ocupada pelos estudantes. Melhor dizendo, na visita anônima e solitária que realizei para conhecer mais de perto aqueles estudantes que, rompendo com a tradição macunaímica entranhada na cultura brasileira de se querer levar vantagem em tudo, e de se evitar a denúncia ou a contestação de fatos relacionados a malversações na esperança de que o silêncio conivente leve à possibilidade de também ficar com um pedaço do butim, e que surpreendentemente se apresentaram à sociedade brasileira como defensores de uma ética republicana na condução dos negócios públicos.
Sim, pode ser difícil de se compreender aqueles estudantes à primeira mirada. Não foram os professores dos departamentos de filosofia, direito, sociologia ou assemelhados os primeiros a se rebelar no campus contra as condutas que o Ministério Público apontava como não adequadas na gestão de órgãos da UnB, como também não partiram de parlamentares ou sindicalistas até então alinhados com a bandeira da educação as iniciativas de um posicionamento absoluto por uma ética radical.
Aos jovens estudantes em ocupação da reitoria o aconselhamento primeiro que viera da casta professoral, da corte parlamentar e de instâncias administrativas superiores fora de um conformismo atávico. Os argumentos preponderantes eram de que à ilegalidade não se chegara na gestão daqueles recursos públicos destinados à educação, ainda que se pudesse discordar no campo moral sobre as escolhas feitas na aplicação dos mesmos. Os doutos, as Vossas Senhorias e as Vossas Excelências afirmavam aos alunos que as questões em denúncia pelo Ministério Público não eram de ordem legal, mas sobretudo de natureza ética, e que assim deveriam ser discutidas. Pobres aprendizes, aconselhados naquela circunstância por alguns de seus ilustres mestres a se consolarem com uma possibilidade infinita de tergiversações sobre se o que não é ilegal mas se apresenta como antiético seria ou não passível de contestação.
Eles não se conformaram e fizeram com a ocupação a sua própria hora acontecer. E foi com a alegria de ouvir aquele retumbante não que os estudantes pronunciaram com o seu gesto de ocupação ao mesmo tempo pacífica e radical que percorri o pequeno trajeto entre o estacionamento e o prédio da reitoria. Quando finalmente me aproximei do prédio alguns deles estavam lavando com água e sabão o prédio da reitoria, dois ou três ao violão ensaiando acordes de Renato Russo, outros em leitura e muitos com olheiras das noites mal acomodadas.
Entrei no túnel do tempo e vi ali flashes da greve de estudantes do ano de 1977, na mesma UnB. Naquele ano, muito ao contrário da República Livre pela Ética proclamada pelos estudantes de 2008, o campus da UnB foi ocupado por centúrias, talvez um milhar de policiais que, por solicitação do reitor e com aval do Palácio do Planalto passaram a espionar, intimidar e a reprimir os estudantes em greve naquele período. Eu confesso que tive dificuldade em identificar as sensações que me vinham naquele caminhar. Trinta anos depois tudo estava muito ao contrário na Universidade de Brasília. Ao contrário de um reitor plenipotenciário protegido por seguranças e alimentado de informações sobre o movimento estudantil por toda sorte de instrumentos, inclusive de fotos tiradas por teleobjetivas postadas no alto da reitoria para identificar os alunos que se reuniam a trezentos metros dali no teatro de arena, o edifício da reitoria estava naquele instante sob controle pacífico daqueles jovens universitários.
Em 1977 eu cursava o quarto semestre de agronomia, e fazia parte do Centro Acadêmico Agro-Flô, que representava também os alunos de engenharia florestal da UnB. Recém calouro, eu apoiava as lideranças do Centro Acadêmico durante a greve ora pintando faixas, ora convocando e participando de mobilizações da greve que realizávamos em prol da anistia política, da redemocratização do país e de bandeiras difusas pela autonomia universitária, entre elas a escolha do reitor pela comunidade acadêmica. Não tínhamos denúncias concretas contra o reitor José Carlos Azevedo. O protesto era político e nacionalmente articulado. Mas, na universidade, o então reitor simbolizava o regime, e por isso caminhávamos minhocão afora com os bordões de "a greve continua, põe o capitão na rua", e outros tantos até que o campus, inicialmente ocupado por um conjunto de falsos alunos travestidos de hippies fora de moda que a tudo vigiavam e que se calavam à primeira tentativa de conversação, por fim oficialmente ocupado pela polícia. Aos soldados contrapunhamo-nos apenas cantando o Hino Nacional e o Hino da Independência com a bandeira do País à frente dos manifestantes.
Ficou na memória coletiva a imagem do King Kong, alcunha com a qual identificávamos um policial escolhido pelos estudantes para tipificar o padrão da ocupação. A memória distante faz ternos até os momentos mais difíceis pelos quais passamos, onde as polaridades se desvanecem e uma bruma de poesia toma conta.
Perdemos aquela greve, foi a minha impressão à época. O reitor puniu mais de 50 estudantes, alguns deles com a expulsão. O conselho universitário foi convocado para analisar as punições e, para desconsolo dos estudantes e de uma parte dos professores, endossou os feitos da reitoria. Um sem número de estudantes em desencanto ou em fuga da repressão desencadeada não retornou às aulas, eu entre eles. Abandonei o curso e a instituição. Mas, por estranho desígnio, guardo até hoje a minha carteirinha e sempre soube de cor o número da minha matrícula na UnB. Naqueles meus 18 anos eu não aceitava que as punições estivessem endossadas pelo que seria o órgão maior da instituição, não concordava com o progressivo retorno às aulas pela maioria dos alunos, e também não aceitava o discurso parlamentar de nossos interlocutores no Congresso Nacional que nos consolavam afirmando que os objetivos tinham sido alcançados, como se a greve tivesse sido vitoriosa. Tudo era muito intangível para mim, e argumentei que ao invés de continuar o estudo da agronomia eu deveria buscar o conhecimento do comportamento e da alma humana. Fiz vestibular no CEUB, Centro Universitário de Brasília, e me formei em psicologia. Em verdade sem nunca ter encontrado respostas para as perguntas que eu me fazia naquele segundo semestre de 1977.
Foi com este pequeno filme a me passar na cabeça que cheguei ao pé da rampa de acesso à reitoria ocupada pelos estudantes. Eu os observava ora como pai, ora como grevista de 1977. O que aqueles jovens estudantes pediam em 2008 era em muito superior às nossas reivindicações de 1977. Mesmo a simbologia do ato reivindicatório de literalmente ocupar a reitoria, sem violência ou vandalismos superava o nosso protesto peripatético de caminhadas pelo campus, de reuniões em anfiteatros ou de assembléias no teatro de arena em 1977. Sim, é preciso considerar que em 2008 os estudantes puderam contar em seu protesto com as garantias constitucionais do estado de direito que pleiteávamos em 1977. A maioria dos alunos em ocupação da reitoria em 2008 nasceu já com a democracia em consolidação, experimentaram o voto para presidente aos 16 anos, puderam participar de eleições para reitor e da discussão sobre políticas públicas de educação, e que ao lado da anistia política eram nossas bandeiras três décadas atrás. A falta de bandeiras políticas pelas quais os estudantes pudessem se bater foi apontada durante os anos de 1980 à década de 2000 como fator de desmobilização dos movimentos estudantis durantes os anos da democracia, chegando mesmo ao controle de organismos de representação lideranças simplesmente aderentes aos governos de plantão, com reivindicações que não ultrapassavam o chavão de 'mais verbas para a educação', inclusive verbas para sustentar o próprio movimento, e que assim se despersonalizava.
Porém, algo de novo, algo de diferente se passava com aqueles estudantes ali na UnB. Junto à rampa troquei as minhas poucas palavras com as duas alunas que cuidavam do controle de entrada. Meio minuto depois de eu ter perguntado se eu poderia entrar, mesmo sem a carteirinha exigida como salvo-conduto, não sei bem o porquê elas me acreditaram como ex-aluno e colega de 1977, e também como pai de uma aluna de 2008 que estivera com elas em vigília numa das noites de ocupação. Talvez me tenham lido os olhos ou a alma e percebido que a minha missão era de paz. Mesmo com o convite delas optei por não subir. A visita no piso térreo já me tocara por demais.
Uma das alunas ao pé da rampa estudava Física, e a outras Ates Cênicas. Elas não tinham outras reivindicações que não fossem a da busca da correição no exercício da função pública. Não tinham discursos decorados ou estruturas de argumentação ideologicamente padronizadas. Não eram contra e nem a favor do governo, não passava por estes caminhos previamente pavimentados o protesto delas. A razão do protesto viera da indignação dos estudantes e de suas famílias, a razão estava na busca por uma ética que elas consideravam possível e adequada, ainda que a muitos parecesse perdida ou ultrapassada. De saída, perguntei a elas o motivo de terem escolhido os cursos que faziam. Não me vejo fazendo outra coisa na vida, respondeu uma de nome Maritza. Com esta frase a me ecoar caminhei de volta ao estacionamento, meio que chorando e rindo baixinho, de orgulho daquela meninada.
No domingo, 13 de abril, a notícia de que o reitor da UnB havia renunciado ao cargo, assim como o vice-reitor o fizera no dia anterior. Eu fiz as contas e percebi que em apenas dez dias um grupo inicial de 150 alunos derrubara a reitoria de uma das mais importantes universidades brasileiras. Não quebraram um único vidro. Não viraram ou incendiaram carros. Nem mesmo palavras de ordem que pudessem contagiar multidões em passeatas eles as tinham nas faixas de papel que grudavam com fita crepe nas paredes. Eles pediam e diziam simples e radicalmente ética. E venceram. Por impensado que pareça.
De certa forma, talvez para o meu conforto na busca das respostas que desde há muito eu procuro, fiquei com a impressão de que 2008 foi o ano em que 1977 terminou.
Meninos e meninas deste feito, muito obrigado.
João Vianney.
Ex-aluno da UnB. Matrícula 76/02251
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10 comentários:
Muito bonito texto!!
Caro Jo�o,
belo texto. Sinceridade comovente. Eu me emocionei ao l�-lo. Sem d�vidas, a sua luta em 1977 foi fundamental para nossa atual conquista.
ass: Eduardo Rocha
p�s-direito/unb
Emocionante
Esses são manifestos que deveriam ser colados pelo campus
muito bom!1!!1
Eu sou a garota que faz Fisica e fiquei emocionada e impressionada com esse texto. quando vi o joão não tinha noção da sua historia. nossa luta é uma só.
Muito comovente esta narrativa.
Enfim, chega o momento que a angústia não permite esquecer.
Olá João! Fiquei muito emocionado pelo texto, muito mesmo. Chegamos em Brasília em 1975 e me recordo de algumas grandes manifestações na UnB em que pequeno ia acompanhar meus pais de carro até o minhocão para deixar um dos dois, mas as vezes a situação não permitia que entrássemos. Ao sermos todos os carros parados diante de um cruzamento avistando o minhocão ao longe, um soldado disse para minha mãe, "...o minhocão está fechado por casa de alguns estudantes, mas logo logo será liberado, não deve demorar muito para a situação tranquilizar". Nunca me esqueço disso. É claro que mesmo menino eu já sabia que alguma coisa estava errada.
Meus pais foram professores da psicologia, eu fiz mestrado em Botânica na UnB e também fui professor substituto recentemente em Fisiologia Vegetal. Desde 2002 venho acompanhando o ressurgimento do ME e tenho fotografado desde então. Fui um dos fotógrafos desse movimento. Foi difícil escolher as fotos para o seu texto, mas vou acrescentando outras fotos. Olha, gostaria de lhe presentear com as fotos deste belíssimo movimento. Entre em contato comigo: bucher@unb.br. Um grande abraço irmão, JPhilippe Bucher
Esse texto continua a me emocionar!
Mesmo depois de tanto tempo é empolgante lembrar dessa ocupação, dessa conquista!!!
João Viannei Parabens pelo belísssimo texto que somente conheci hoje quando pesquisava a greve de 1977 para meu livro. Participei como liderança pois era representante eleito da Medicina efui suspenso por 30 dias pelo sanguinário Azevedo. Tive sensação semelhante ao visitar a UnB em 2010 parece que, afinal, a nossa greve deu certo...Abração João Fanuchi em 1977 era João Camanducáia.
Olá, gostaria de contar com a memória de vocês: tem um candidato a distrital aqui em Brasília, que se apresenta como Mestre Paulão, mas que várias pessoas estão identificando como o King Kong de 76/77. Será que é ele? Se for, é bom que isto fique claro. O que acham?
Meu nome é Letícia, meu email?leborges1@gmail.com
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