Nota introdutória
No dia 3 de abril, quinta-feira, estudantes da UnB ocuparam a reitoria da universidade com 18 reivindicações. Eles pediam a saída do reitor e vice, e ainda pedem mudança do estatuto da instituição e eleições paritárias. A ocupação dura mais de uma semana e conseguiu a renúncia do reitor e vice-reitor da UnB (Timothy Mulholland e Edgar Mamiya). A Justiça estabeleceu multa de R$ 5 mil por hora ao Diretório Central dos Estudantes – DCE no dia 4 de abril, caso os manifestantes não desocupassem o prédio. O valor já chegou a um milhão e a rádioweb do movimento recebeu o nome de Rádio R$ 5 mil por hora em referência à multa.
Observando e vivenciando a ocupação da reitoria da UnB, decidimos reunir pessoas que passaram pela apuração e redação do Falando em Política para publicar uma edição especial sobre a mobilização na UnB. A ocupação chama atenção pela dimensão assumida, conseguindo convocar assembléias com mais de mil estudantes. Porém, o grande destaque é para o surgimento, entre os estudantes, de um movimento autônomo, horizontal e extremamente criativo. A mobilização é uma mistura de formas tradicionais de organização do movimento estudantil (assembléias e paralisações) e de novos movimentos sociais (manifestações culturais e produção audiovisual).
Ao subir a rampa da reitoria, há um cartaz acima de duas barracas: Zona Autônoma Temporária. Será esta uma boa definição para explicar o que está acontecendo na ocupação? A Zona Autônoma Temporária - ZAT tem caráter efêmero e desaparece ou se re-significa antes do Estado poder reprimi-la. Para caracterizar toda a ocupação como uma ZAT, ela deveria ter desaparecido há partir do momento em que foi definida (movimento de estudantes pela saída do reitor e novo estatuto da UnB). Contudo, diversas ZAT's podem estar acontecendo dentro da ocupação.
Aparentemente, existem dois espaços no ambiente. De um lado, há a preocupação estratégica de conquista das reivindicações propostas pelo movimento, construídas por meio de assembléias e deliberações conjuntas. De outro, existe o espaço de convivência entre estudantes, servidores, professores, estimulado por atividades culturais, debates e oficinas. As Zonas Autônomas Temporárias podem ser encontradas sobretudo neste segundo espaço e frequentemente passam desapercebidas. As ZAT's geram novas formas de interação entre os indivíduos e destes com o Estado. Elas sugerem outra ótica de resistência, também mais difusa e talvez mais profunda, construindo uma nova forma de viver e de fazer política.
Esta edição do Falando em Política não pretende definir a ocupação, mas relatar e revelar inquietudes geradas por este momento. As matérias se interessam principalmente pela estrutura, cotidiano e ambiente da ocupação. Os autores assumem que não há distanciamento do movimento e dos estudantes que se manifestam na ocupação. Assim, os entrevistados são chamados pelos primeiros nomes ou apelidos. Todos os textos são assinados e acompanhados por uma rápida descrição que indica a relação do autor com a Universidade de Brasília. Esperamos que a ocupação não deixe saudades dos encontros e fecundidade cultural gerados, mas que o movimento se transforme e descubra novos espaços para se manifestar e reivindicar sua luta.
*Destacamos que o boletim Falando em Política não voltou à ativa. Mas, a edição especial surge da vontade de ocupar este espaço midiático, como estudantes ocuparam aquele outro.
Intuito coletivo*
Carolina Mendes – formada em Letras Inglês e Português pela UnB
À primeira vista o espaço pode parecer confuso, com todos os cartazes coloridos e pessoas transitando, se preparando para protestos, fotografando, varrendo o chão, jogando malabares, fazendo entrevistas. Mas na entrada da rampa o aviso "mostre a carteirinha" anuncia que ali, em meio ao aparente caos, as pessoas estabeleceram regras, se organizaram.
Um funcionário da reitoria pede passagem até sua sala e aumenta sua voz quando lhe demandam documentos. Afinal de contas, ele trabalha ali há 30 anos e nunca foi necessário se identificar. Pacientemente lhe respondem que, infelizmente, aquela ocupação não esteve com ele naquele espaço durante esses trinta anos e que tais medidas visam preservar o espaço e aqueles que dele fazem parte. Alguém comenta então, quase surpreso, que realmente as pessoas se organizaram.
Os cartazes, que inicialmente divulgavam os protestos e reivindicações da ocupação, agora pedem às pessoas que zelem pelo espaço, que contribuam. Foram feitos em mutirão e cada participante colocou ali a mensagem que achava necessária.
As decisões são tomadas em assembléia. As assembléias da ocupação acontecem diariamente, e definem as ações do dia seguinte. As assembléias estudantis são convocadas para as decisões que concernem toda a comunidade da UnB, e têm agregado paulatinamente um maior número de pessoas. Estima-se que a primeira delas, no dia 07, tenha contado com 1.300 estudantes, recorde ultrapassado no dia 09, com 1.600 pessoas.
Há comissões para tratar da logística, da comunicação, da negociação, da segurança, e até mesmo para promover espaços de cultura. A cultura é ali proposta como meio de entretenimento e formação e as oficinas acontecem espontaneamente, podendo mesmo ser oferecidas por um yogi (instrutor de yoga) de passagem.
Mais que o apontamento de regras lavradas, as pessoas contam com a consciência dos envolvidos, com o intuito coletivo tão prezado. Não esperam ter de explicar ou de se explicar. Não definem papéis, mas permitem que os envolvidos assumam os que queiram ou achem mais adequados. A pró-atividade é a ordem do dia, e está claro que a maioria daqueles que estão no espaço, que fizeram da ocupação o seu espaço, têm agido dessa maneira.
*A expressão foi presente do Rafael em nossa conversa
No princípio foi a luz, depois a idéia e, após 20 minutos, a rádio
Juliana Mendes – formada em Comunicação Social pela UnB
A luz volta na sexta, dia 4 de abril, ao prédio ocupado da reitoria e o estudante de sociologia, Alan, fala em assembléia da importância de um mecanismo de comunicação direta do movimento. Para a sua "não surpresa", como descreve, outros estudantes também estavam se mobilizando para montar uma rádio da ocupação. Houve uma sintonia entre as pessoas que faziam algum tipo de rádio, explica. Após 15 a 20 minutos a rádioweb do movimento estava no ar.
Além da rádioweb, o movimento da ocupação utilizou blog, chat e vídeo - meios presentes principalmente na internet. Para o estudante de ciência política, Danilo, a internet tem grande poder na sociedade e, diferente dos meios comerciais, ela permite a comunicação freiriana . Enquanto as pessoas somente recebem a informação produzida a partir da linha editorial da mídia comercial, há maior interatividade e diálogo na internet, explica o estudante. Porém, Danilo reconhece que a internet ainda é um meio restrito no Brasil. O jornalista independente e autônomo, Chiquinho, acredita que o surgimento de vários meios alternativos na ocupação se deve à apropriação da tecnologia em curso na sociedade.
Segundo o jornalista, para quem luta pela democratização da comunicação é importante produzir suas próprias mídias. "Eu sempre estou com uma câmera na mão", explica. Durante a ocupação, já foram produzidos, pelo menos, 30 vídeos . Chiquinho explica que houve vídeo da ocupação com 500 acessos no youtube em um dia. Inclusive, antes da ampliação da ocupação para todo o prédio da reitoria, a primeira edição de telejornal do movimento foi gravada com uma câmera enviada por meio da sacola, que transportava alimentos e outros materiais. Os vídeos do youtube mostram as assembléias, discussões, depoimentos de professores, alunos e apoiadores.
O blog da ocupação também exibe moções de apoio de coletivos e indivíduos, além da programação cultural, fotos do local, boletins e informes e a pauta de reivindicações . Para Danilo, o blog permite os estudantes colocarem sua opinião por completo, além de ser oficial. O diário eletrônico é alimentado pela comissão de comunicação da ocupação. A comissão é composta por aproximadamente 10 pessoas e aberta à participação de demais estudantes interessados. A maioria das pessoas que se propuseram a participar da comissão já possuía experiência em comunicação, seja pelo interesse por algum meio, como a fotografia, ou a dedicação a um coletivo de mídia livre, como o Centro de Mídia Independente ou as rádios Radiola e Ralacoco. Contudo, as poucas pessoas sem conhecimento prévio no tema estão acompanhando as atividades dos demais, explica Danilo. A comissão também possui a tarefa de lidar com a grande mídia.
Atualmente, a ocupação possui skype (ocupacaounb), msn (reitoriaocupada@hotmail.com), correio eletrônico (ocupacaounb@gmail.com), comunidade no Orkut e chat (no canal #arla). O chat surgiu para ser um canal imediato com os ouvintes da rádio, explica Alan. Os ouvintes participavam dos debates e também falavam como estava a transmissão da rádio, uma vez que não havia um som de retorno no estúdio. Para o Alan, o movimento precisava da ajuda dos ouvintes porque nem todas as informações chegavam aos estudantes quando a ocupação se restringia ao último andar da reitoria, como, por exemplo, fatos de repercussão nacional.
A rádio é transmitida no servidor do Projeto Dissonante . Leyberson, aluno especial do mestrado da comunicação e um dos idealizadores do Dissonante, recebeu telefonema no dia 4 de abril avisando que os estudantes da ocupação queriam criar uma rádioweb. Após a ligação, Leyberson enviou um e-mail explicativo com a senha para o correio da ocupação. Logo, a rádio estava na internet e o aluno especial escutou para verificar se tudo estava funcionando. "A avaliação é, com certeza, positiva; afinal, é um meio de comunicação 'ao vivo', dentro de uma manifestação política, dentro de uma desobediência civil", enfatiza. Inicialmente, Leyberson ficou receoso com o excesso de falas descontextualizadas e brincadeiras. "Mas, conversei com outras pessoas e cheguei à conclusão de que a rádio era um espaço alegre, descontraído", argumenta.
Dentro da ocupação, a rádio foi um instrumento de agregação e também serviu para aliviar a tensão quando os estudantes estavam sitiados no último andar da reitoria, disse Alan. O estúdio foi montado na ante-sala do gabinete do reitor em uma mesa grande que propiciou o debate em roda. Contudo, havia um cuidado com o que se falava no microfone e nos arredores, enfatiza Alan. O estudante de sociologia explica que houve grande interesse e o microfone passava de mão em mão. "Pessoas que não conheciam muito sobre mídia, não conheciam muito sobre rádio, se declararam como novas apaixonadas pela rádio", conta.
Ocupantes e ouvintes sugeriram nomes para a rádio durante um dia inteiro. Rádio paridade, rádio Timóteo e rádio ocupação são alguns nomes lembrados por Alan. O estudante explica que alguns nomes eram enormes, algo como: rádio pelo movimento de unificação do movimento estudantil pela qualidade de ensino... O nome Rádio R$ 5 mil por hora ganhou em votação por ampla maioria. "Quase ninguém sabe quem deu o nome da rádio", disse Alan. Para o estudante, não saber quem deu o nome mostra que a rádio é feita por todo mundo de forma horizontal.
O jornalista Chiquinho acredita que o movimento deve se dedicar mais à produção da comunicação. Não discorda das reuniões para analisar a mídia comercial e fazer clipping das notícias. No entanto, pensa que a produção da comunicação deve ter mais ou a mesma importância destas outras atividades. De qualquer forma, Chiquinho defende que os manifestantes com experiência anterior em coletivos de comunicação incorporaram o movimento e estão trabalhando para a ocupação. "A galera se tornou a mídia da ocupação", enfatiza.
A relação com a mídia foi boa e houve destaque para a ocupação, afirma Chiquinho. Danilo também avalia como ponto positivo da mídia comercial a cobertura das grandes manifestações, além da relação respeitosa nas entrevistas e a não-desfiguração das declarações. Alan acredita que a mídia corporativa entendeu as reivindicações como legítimas e não deturpou o movimento como violento. Porém, para Danilo, por vezes, a mídia não se aprofunda em outros pontos de pauta além da saída do reitor e vice. O Congresso Estatuinte e a Paridade são muito mais importantes porque mudam o rumo da universidade. Alan também acredita que, devido a relações hierarquizadas, a mídia é incapaz de entender novas formas de organização, como movimentos autônomos e horizontais, e cria lideranças da ocupação.
Marcelo Fachina - estudante do 9° semestre de graduação em Ciência Política da UnB
As Zonas Autônomas Temporárias não devem ser entendidas como a mais nova tática revolucionária ou instrumento de luta que busca fugir da lógica da definição imposta por uma sociedade de espetáculo. Devem ser entendidas como uma tentativa, uma sugestão, um extravazar.
Elas partem de uma constatação/questionamento: por que o mundo de cabeça para baixo sempre consegue se endireitar? Por que reações necessariamente sucedem revoluções (ainda que estas reações consigam reorganizar as relações de poder numa sociedade)?.
Zonas Autônomas Temporárias não são revoluções. Não constituem nem mesmo em sua semente, pois, se assim fosse, seguiriam a lógica consensualmente acordada desta: revolução, reação, traição, fundação de um poder ainda mais repressor (Bey, 1985 ). O conceito que mais se aproxima das ZAT's é o de levante (uprising), movimento que não corresponde a esta trajetória pré-estabelecida. Justamente por desviar-se da rota, o levante sugere a possibilidade de um movimento exterior Os levantes violam a lei da História e são um momento proibido. Isto é, são a negação da dialética e um momento de catarse (ao contrário da revolução, que busca de alguma forma a permanência da subversão que propõe). Levantes não podem acontecer todos os dias e não devem ser permanentes.
ZAT's também não são um substituto às revoluções. Elas não constituem um fim em si, não substituem outras formas de organização, táticas e objetivos. Seu caráter temporário, efêmero, as coloca em posição de confronto indireto com as forças dominantes. "Uma operação de guerrilha que liberta uma área (de terra, tempo, imaginação) e depois se dissolve para ser refundada em outro lugar/outro tempo, antes que o Estado possa destruí-lo" (TAZ - subparte Waiting for Revolution). É difícil, portanto, determinar a existência de uma ZAT antes de seu fim. Como saberemos a maneira de dissolução do processo?
O início de uma ZAT pode envolver o uso de violência e conflito. Entretanto, é em sua invisibilidade que reside sua principal força. A ausência de signos que as caracterizem as tornam, de algum modo, imunes à ação dos aparelhos repressores. A partir do momento em que esses movimentos são identificados, significados e representados, eles devem se extinguir. Sua lembrança enquanto tática bem sucedida e marco de liberdade temporária são sua contribuição para um movimento de longo prazo: mais como uma experiência vivida pelo militante/ativista/cidadão do que um manual de reorganização da sociedade.
Mateus Fernandes - formando no Departamento de Filosofia da UnB
Fantasmas rondam os movimentos. Os movimentos não são feitos com fantasmas. É urgente recuperar os homens e as mulheres que fazem os movimentos, os homens e as mulheres que se movem - às vezes pelos fluxos, às vezes contra os fluxos (nem sempre com os fluxos). A ocupação da Reitoria da Universidade de Brasília se agencia como um corte de fluxo.
Homens e mulheres coabitam todos e todas nós. Fantasmas povoam nosso imaginário - há que se liberar, alforriar (mais que exorcizar) os fantasmas.
Há pelo menos 3 fantasmas aparentes: os Organismos, que normatizam e regulamentam os fluxos, os órgãos e as pessoas; os Sentidos, os Significantes, que são presenças metafísicas com aparência de necessidade; e os Sujeitos, entidades universais que nos impedem de ver os processos de subjetivação e assujeitamento, que mascara ou oculta as pessoas, que cria categorias e classes homogeneizantes.
Cortes de fluxos se fazem presentes atualmente. A normose do movimento cria autômatos, e os move em vias previamente determinadas - são bandos condicionados (até aí somos todos e todas condicionadas); mas as condições, elas mesmas, de onde vêm?, para que servem? e a quem servem? Seguir essas condições impede a visão, faz tapar os ouvidos, cala a voz, desautoriza o toque (faz do tato algo sempre diplomático); é inodora, insípida e insustentável - enfim, atrapalha a percepção, esfacela os sentidos.
De repente, o fluxo é interrompido. Sobem pela rampa contra-fluxos desejantes, um anti-poder, um proto-poder. O que vinha sendo, por continuidade de fluxo, sempre igual e sempre o mesmo, é cortado; é diferenciado; é extinto. Neste instante, por isso, por este corte de fluxo, o que se passava passa a ser percebido. O fluxo contínuo, e não somente o corte de fluxo, é notado - dele até sente-se falta, ainda que sua presença fosse, antes, metafísica; inaudita. A Reitoria, aquele prédio, aquele fluxo de pessoas que por ali caminhavam (trabalhavam até), não deixa de acontecer, mas agora ele acontece de maneira diferenciada. E é isso que os sentidos devem perceber - não a igualdade do todo-dia que nos falta, mas a singularidade que hora se nos apresenta e traz à tona o que antes era oculto (porque evidente), o que antes era normal (porque cotidiano) e o que antes não deveria deixar de ser (porque real). A virtualidade da invasão, quando atravessa o plano de consistência da realidade da Reitoria, dá novos contornos e atualiza o território - este território não deixa de ser o espaço de decisão da UnB, mas as decisões é que mudaram.
Agora que fluxo foi interrompido, e os sentidos ocupados, há que se dar sentido à ocupação? Tenta-se, a todo custo, preencher o vazio que fica na Reitoria. Tenta-se preencher de órgãos o corpo-vazio que agora permite a transitoriedade de fluxos, antes impedidos de por ali passarem. O organismo quer (re)tomar o lugar que agora é ocupado pelos movimentos.
Como dissemos, estas estratégias são lideradas pelos 3 fantasmas que assombram os movimentos.
No espectro do primeiro fantasma, os Organismos, está a falta de sentido para a ocupação, a castração que a ocupação (pretensamente) parece operar. Ele indica que há uma certa lacuna - que precisa ser preenchida! - de aceitação, de submissão ao Organismo: existe um organismo, existe um todo, existe algo que está organicamente organizado e que controla o movimento, os vários órgãos disjuntos. A este impulso de dominação do organismo é que se impõe a necessidade de um "corpo-sem-órgãos". Não é a negação dos órgãos ou a mera externalização do organismo: o organismo está dentro do movimento, nos pequenos fascismos e burocratismos tecnocráticos.
Há um tipo de mídia que media, e há um tipo de mídia que nomeia. Há um tipo de mídia que apresenta, e há um tipo de mídia que oculta. Há tipo de mídia que enfoca a experiência e busca o que acontece, e há um tipo de mídia que enfoca a interpretação e busca o que dá sentido. Não há um sentido para a ocupação, porque há muitos sentidos; como não há uma interpretação possível para a ocupação, porque há muitas experiências singulares na ocupação. O sentido da ocupação é a experiência do que acontece e não a interpretação do acontecido.
O segundo fantasma assombra pela necessidade de enunciação de um significado por um Significante. Para cada coisa que se enuncia há um nome para dar sentido a essa coisa. E, para cada nome, há que se dar um outro nome para sustentar o sentido desse nome. Cada vez mais submerso, o sentido mesmo se perde em nomes, ou se multiplica em possibilidades. Há que se resgatar não o sentido perdido, mas a perda de sentido como reanimação dos sentidos-sensíveis. Esta EstÉtica da Ocupação fala da aesthesis como referência aos sentidos-sensíveis que permitem e captam a experiência da ocupação. E é por isso que ocorre a ocupação dos sentidos, mesmos dos sentidos esquecidos, dos sentidos ocultados. Há suor, há sangue, há lágrima, há paixão, há toque, há muitos sentidos envolvidos nesta ocupação. Que se ocupem os sentidos, pois!
O Sujeito universal, onipresente e indivisível, que permite a existência de um organismo e que dá um sentido necessário ao acontecimento é o terceiro fantasma que ronda os movimentos. Há que se observar a desnecessidade de operação de um sujeito nessa ocupação. São sujeitos-desejantes coletivos, assujeitados e percorridos por processos de subjetivação que povoam aquele lugar. Desterritorializar o sujeito-estudante não é negar a existência de estudantes na ocupação da Reitoria, mas sim enfatizar que os ocupantes e as ocupantes não "são" somente estudantes, trancafiados nessa categoria com regras particulares de conduta e ação. Eles e elas também são percorridas por desejos variáveis, são devires-professor(a), devires-funcionário(a). Dar o aspecto de "sujeito-estudante" ao sujeito-desejante é normatizar os desejos, é conduzir os devires, é impedir a alteridade e legitimidade do movimento. Há que se buscar escapes, linhas de fugas que permitam sair desse imperativo e dessa categorização - para que se possa ir mais além.
Ocupemos! Ocupemos os sentidos, as mentes, os corpos! Vamos dar sentidos, vamos dar todos os sentidos, à ocupação! Vamos dar os nossos sentidos à ocupação!
E vamos fazer desse corte de fluxo uma possibilidade de repensar a trajetória do fluxo quando ele retornar (já diferente)!
Clóvis Henrique – estudante do mestrado de Ciência Política da UnB
Aos 40 anos da histórica movimentação estudantil que marcou não apenas a sociedade brasileira com radicalismo e irreverência, em um momento em que estruturas sociais, políticas e econômicas estacionavam a inovação e o desenvolvimento, a juventude novamente se une atenta ao colapso institucional vigente. Trata-se de um tempo em que a apatia ou o distanciamento do espaço público não se sustentam diante do evidente desmoronamento de instituições já incapazes de suportar a complexidade dos problemas da atualidade.
A ocupação da reitoria na UnB, neste abril de 2008, é o ponto alto de um processo de mobilização juvenil que reflete o descontentamento com a forma de gestão da coisa pública. A indignação diante das ações de improbidade administrativa não foi vencida pelo maior escândalo de todos os tempos da última semana, já tão comum nesse século que se distancia do maio de 1968. A celebração do tempo passado veio com a inovação no tempo presente. E foi efetivada por ações diretas descentralizadas realizadas por um movimento de movimentos, constituído de grupos e indivíduos autônomos, que fez emergir a autopoiese social, ou seja, a reestruturação auto-organizativa gerada pela necessidade de estabilidade das estruturas e a urgência das mudanças culturais.
Com isso, basta da nostalgia do tempo não vivido! Quiçá haja o conhecimento e o reconhecimento de que as juventudes em todos os tempos criam e recriam suas formas de ação e que não se imobilizam, mesmo quando se mobilizam! A predisposição ao radicalismo que permite inovação não é aquela que usa a força, mas sim aquela que sabe tornar obsoleto aquilo que se almeja transformar. Ao reunir pessoas e coletivos com trajetórias distintas, instituindo a organização horizontal e rotativa nas funções, as movimentações pela ocupação da reitoria na UnB foram à frente de seu tempo e demonstraram que, ao questionar a centralização das decisões, pode-se praticar a descentralização; ao criticar a liderança obsoleta, pode-se viver a multiliderança; ao impugnar atos de corrupção, pode-se agir com transparência.
Se o colapso institucional gera tamanha revolução no cotidiano, não parece coerente a necessidade do co-lapso (descuido de ambas as partes?) para que se fale em política. Incorrer em erro é algo comum e aparenta ser o caso de cidadãs, cidadãos e governantes que, ao compactuarem com ações de descuido na gestão pública (co-lapso), trazem a desintegração institucional (colapso). As novas formas de fazer política que os movimentos juvenis de ontem e de hoje empreendem desafiam a questão: é preciso o colapso para falar em política?
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